terça-feira, 30 de outubro de 2012

Dificil



Começo a achar que a escrita só flui (ou flui melhor) quando a neura aparece (ou quando a neura é solidária com nerua alheia), quando as condições climatéricas estão entre o bom e o mau ou quando "tem de ser...".

Às vezes vive-se enquanto a vida passa, segue (porque tem e deve seguir). Os minutos consomem-se num ápice de meias horas, as horas voam, os dias passam e as rugas sulcam as faces. Caminha-se como que de olhos fechados para o destino previamente traçado pelo rotineiro caminho do dia-a-dia.

Marca-se um destino no horizonte e é um partir, mas não como quem parte à aventura, mas simplesmente parte...não se pode estar parado, não é? Tudo de passa entre olhares e sorrisos abertos, honestos, de circunstância...

Tudo à volta parece bem, sorridente, feliz...espera-se pela osmose, seguem-se exemplos, tentam-se replicar vivências, procuram-se soluções. Definem-se (e redefinem-se) padrões e requisitos (esquisitos?) para ser feliz, para alcançar esta ou aquela meta. Surgem obstáculos, felizes infelizes e infelizes que desconhecem a sua felicidade. Haverá uma míopia (ou outra qualquer patologia ocular) da "felicidade nostrum"?

Malditos (?) estes dias que me roubam as certezas, levantam incertezas e me tiram do estado por vezes absorto em que caminho no corredor da vida. Então não era só juntar C+D+E aos meus já adquiridos A e B para alcançar "aquilo"?

Resumindo, é dificil...feliz ou infelizmente é difícil viver-se! Venha de lá mais uma materialização da "minha manifestação alérgica" para que ouça um enérgico (mas na 3ª pessoa): VIVA!



segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Música, music, musique...



Não é fácil definir o que é a música e igualmente difícil me é dizer o que a música é para mim.

Quando as palavras não brotam, quando a boca está desidratada e o dicionário mental de sinónimos bloqueia e se desnorteia, há que recorrer a quem tem o dom de fazer das palavras música. 

Cale-se o meu papaguear de caracteres para que se ouça (e leia) o que de mais belo e completo escreveram sobre o assunto - quer se goste do autor ou não (quiçá se passe a admirar ainda mais o seu talento):






Mão na música

A música é tamanha, cabe em qualquer medida...
Na sua mão sobe o ar ao infinito, de lá treme.
A música por um lado vê-se, por outro não se vê.
Nada da música se improvisa por acaso.
A música corre nas gargantas e pode ser tocada com um só dedo.
A música mostra-se feia para os seus pares e bela para os seus ímpares.
A música emudece por vezes os cantores e deixa-os a sós nos camarins à esper...
a do amigo do carrasco.
A música não é a mesma quando ouvida de longe ou quando ouvida de perto.
A música não tem explicações a dar a si mesma. Isso explica tudo.
A música dá asas a quem voa, a quem tem asas para voar.
A música faz aos poemas aquilo que os poemas quiseram fazer dela: render-se. E aos outros propõem; rendam-se. Tréguas e batalhas sem ordem de aviso.

A musica referenda a liberdade? Sim ou não?
A música depende de um botão da liberdade e desunha-se a mostrar os efeitos de num dedo a voz humana.
A musica faz orelha moucas.
A música não se esquece no silêncio, por isso nos lembramos dela. Permanece em mais que um som.
A música vai por vezes mais alto e de uma torre afunda o eco no centro da terra.
A música aguenta-se de pé, dorme sentada, dança e escorrega na cama.
A música pausa e pausa, faz das malas a viagem mas se acena, já de longe, a música atira os seus poemas ao mar e recebe-os nas ondas do dia seguinte, nas garrafas outro povo.
A música perdeu muitos bons poemas no vento contrário, quem sabe era bons.
A música é uma cópia de uma cópia, cara aberta vai ao fundo e vem à tona por respiração.
A música é uma revolução de estilos, é do passarinho herdeira orfã.
A música é orfã.
Quando nasceu os seus pais tinham morrido há pouco. É orfã.

A música esfrega os dedos em tudo o que der som.

A música nunca teve em si mesma uma moral, pensa que não pensa e que não perdura.
Diz-se que faz muito bem ouvi-la alguém que pense e que perdure por ela.
A música não tem barreiras mas o amor por ela, sim.
A música prepara-se, destroçada, mas vaidosa para confessar tudo ao cair do sol.
A música chora e ri ao mesmo tempo, uma criança por razões não exactamente compreensíveis.
A música quer ser perfeita, sempre que por escolha é imperfeita. Por talento dá-se a todas a bondade, a presunção, ressentimento e mais não fosse a quatro tempos.
A música de repente é a mesma nota repetida e outras vezes. A música mede-se com caneta e gravador. É maior e é menor.
A música quando se encontra já lá está.
A música nasceu antes de nós termos nascido com ela.
A música segue a sua sombra e pela sombra é fácil, não há espelho. Ou é ritmo ou é pausa. Ambos dúbios mas reconhecíveis.

A música é feita à janela e aberta vê-se da rua.
A música eriça-se ao menor vento, arranha-se a si mesma, ladra ao ar, risca a terra. Gosta mesmo.
A música quando a chuva cai com barulho de entre as nuvens vê-se o mar em dia de acalmia o que não é explicável nem por norma nem por excepção dos deuses. Digamos que são os sons em dia de ofertório.
A música vai de rio e desagua. Aquece a água doce, rebenta no mar salgado, larga os seus bichos no mar.
A música tem duas mãos, é tocada com um só peito, um só dedo. Da música sobe o ar ao infinito. A música tem um só dedo e um só dedo.
A música tem um só dedo e um só dedo.
Nada da música se improvisa por acaso.


 (Sérgio Godinho)